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Foto do escritorÁlvaro Mayrink *

A complexidade real da democracia e o papel do direito penal, diante dos conflitos sociais


O direito penal contemporâneo necessita manter laços com as mudanças sociais. As sociedades democráticas exigem a difusão da atitude de dever às exigências penais e processuais do Estado de Direito, que não são relíquias de um formalismo ultrapassado, e sim, um requisito básico de sua legitimação

 

Álvaro Mayrink da Costa[1]

 

1. Na sociedade atual, a liberdade é devida fundamentalmente às inúmeras oportunidades que os indivíduos têm de solucionar seus modos de vida e sua atividade produtiva. A consciência da própria liberdade inclui o conhecimento de possibilidades e predisposições próprias de todos os níveis. Neste programa, o Direito consiste no conjunto de possibilidades de ação que a liberdade dos indivíduos e dos grupos tem ao seu alcance para traçar seu próprio caminho dentro dos métodos que impliquem respeito à liberdade dos demais, entendida como condição geral de toda a licitude.[2] O Direito se refere ao bem comum. Aurelius Hermogenianus[3] dizia, como aparece no Digesto, que “por causa do homem está o Direito”; toda a realidade jurídica surge numa dupla projeção sobre o homem: o individual e o social.Resulta do processo profundamente exato e formidavelmente eficaz, mediando entre a função individual e específica do ser humano.Falar em bem comum é afirmar que a coletividade tem uma projeção própria capaz de convertê-la na realidade satisfatória para todos os componentes. As relações referentes a interesses mútuos se desenvolvem conforme critérios de igualdade, e as relações relativas à organização coletiva, por meio de critério de participação. O bem comum correlativo ao ordenamento jurídico é a organização de condições sociais para o acréscimo da liberdade do homem dentro de uma responsabilidade pessoal dirigida à solidariedade coletiva. Surgem na estrutura interna do Direito as seguintes indagações: a) como assegurar o conjunto de normas que constituem o ordenamento jurídico e sancionar condutas que sejam efetivamente justas, quando são juridicamente ilícitas?; b) como fixar o modelo universal de justiça que possa ser um ponto permanente de referência?; c) que mecanismos pré-normativos são capazes de conectar os modelos universais de justiça?

 

2. A justiça do Direito positivo é uma questão transcendentalmente teórica. O lugar ontológico da justiça ficaria entre o Direito e a dignidade humana. Sem repetir Eneu Domicio Ulpiano (150-223), a virtude da justiça está na disciplina da própria liberdade frente à dignidade da liberdade alheia. As desigualdades naturais existentes entre os homens, mais do que verdadeiras desigualdades, são diferenças no modo de ser e na atividade habitual de cada um; se referem às faculdades racionais, à índole intelectual ou à atividade laborativa, nas diversas situações e funções sociais. As leis são medidas tomadas pela autoridade pública para ordenar, conjugadamente, certas relações da vida social, não só por expressarem certo standard de conduta, mas também por conterem motivos que fazem adequar a conduta aos procedimentos. O aspecto público das normas jurídicas é uma condição essencial da racionalidade, através dos propósitos do poder. A origem dos conflitos sociais pode ser situada genericamente na ideia de “interesse”. O homem vive, se move, se relaciona, impulsionado por interesses de diversos tipos, materiais ou espirituais, egoístas ou espiritualistas, circunstanciais ou permanentes, mas há sempre o interesse, e a causa dos conflitos humanos se situa na detenção do poder e na limitação dos bens materiais. O Direito, como meio de resolução dos conflitos sociais, pressupõe que tais conflitos tenham alguma solução, caso contrário a convivência degenera em agressão constante e essa solução necessária é a que proporciona o Direito. É inegável o realismo de Francesco Carnelutti (1879-1965)[4] ao afirmar que a vida social engendra conflitos de interesses da mais variada natureza entre os homens, e tais conflitos se manifestam na existência dos homens em discórdia, cujas posições se tornam incompatíveis, e podem desaparecer pelo imperativo ético, pois, para ele, o Direito é um meio de solucionar “conflitos subjetivos de interesses”. Sustenta que o Direito colocaria fim aos conflitos humanos, esquecendo-se, todavia, de que muitas relações sociais não se degeneram em conflitos e que nestas está presente o Direito. E, mais, é possível que um conflito não exista, precisamente porque existe uma regra de Direito que limita de antemão a conduta de cada uma das partes.

 

3. Na democracia, a sociedade nacional busca viver sob o império da lei. Nossos direitos não são independentes da sociedade, mas inerentes a ela; quando se proporciona o benefício da educação, supõe-se que usar nossas vantagens para contribuir para o bem-estar social da comunidade. Não existo unicamente para o Estado, mas tampouco existe um Estado unicamente para mim. A pretensão procede do fato de participar como os demais da persecução do fim comum. A política democrática se baseia na maior segurança para assegurar o bem-estar dos cidadãos. Os direitos são correlativos com as funções, desfrutar para poder contribuir para a consecução do fim social, visto que não há qualquer direito de atuar de maneira insólita, antidemocrática, antissocial ou antissolidária. O Estado é a organização jurídica da Nação e o governo democrático é a fórmula suprema de organização política, situando-se o problema da democracia na questão de encontrar homens aptos para o manejo da máquina de produção do bem comum. Assim, a liberdade individual está garantida na igualdade de intercâmbios mútuos, e a liberdade coletiva está garantida na organização democrática do poder. É a proteção e a defesa vigilante do meio onde os homens encontram a oportunidade de aperfeiçoar seus destinos. É produto de direitos e todo o Estado se funda em bases de confiança essenciais para o desenvolvimento. Não há liberdade sem direito, senão os homens seriam obrigados a obedecer a normas e leis totalmente divorciadas de suas próprias necessidades. É definida por suas próprias restrições naturais, porque as liberdades de que se pode desfrutar não são meios de destruir as que nos rodeiam. Constituem aquelas oportunidades que a história proporciona como necessárias ao desenvolvimento e, portanto, inseparáveis do Direito.

 

4. Um sistema que se construa sobre o medo será sempre fatal para o desenvolvimento das faculdades criadoras do homem e, desta forma, incompatível com a liberdade. No mundo contemporâneo, a igualdade significa a exclusão de privilégios especiais, colocando os homens em idênticas condições ante as disputas da vida, que não supõem identidade de oportunidades adequadas desde a sua origem. Chega-se, agora, às indagações do mundo atual que exigem meditação profunda: a) É capaz o Direito de responder satisfatoriamente às exigências sociais? b) Se o Estado se acomoda às normas jurídicas, poderá salvar os hiatos que o separa da realidade social? c) Como poderá o Estado resolver os problemas sociais sem violar o primado do direito e os direitos individuais? d) Será possível desenvolver uma política social à altura dos tempos atuais sem fugir ao modelo jurídico? e) Cabe uma submissão estreita à lei por parte da administração pública ante a urgência de determinados assuntos ou a complexidade de casos que exigem rápida e singular solução? f) Cabe resolver os problemas atuais à base da liberdade? Todos estes problemas cruciantes passaram quase que despercebidos à maior parte dos teóricos do Rechtsstaat, indagando-se: como se concilia o prestígio e a perdurabilidade da expressão “Estado de Direito” com as dificuldades experimentadas pela vigência da atualidade? A igualdade só pode ocorrer na atmosfera irreparável das utopias; a igualdade há de ser das oportunidades livremente assumidas por cada um. Cabe a liberdade dentro de um Estado de Direito se for uma liberdade responsável de seus fins e estará plenamente justificada por uma sociedade justa. A administração é a chave política do Estado. Administrar é planejar, vincular os dirigentes a um ideal, aperfeiçoando as instituições, a fim de atingir o bem comum em toda a sua plenitude.

 

5. Para a democracia, tem-se que possuir uma efetiva consciência das ideias de liberdade, segurança, igualdade e justiça, através da renúncia do supérfluo, do suntuoso, do ostensivo, transmitindo uma filosofia de amor, capaz de elevar os pobres, redimindo-os da miséria pelo espírito da justiça social que substituirá a ideia de piedade em favor dos humildes por meio de uma política de reabilitação pela dignidade do trabalho, bem como na espiritualização da vida, libertando-a das preocupações do gozo dos bens materiais imediatos. Enfim, dando ao homem o significado de seu destino transcendental. A democracia não está apenas nas letras frias das constituições: é espírito, é mística, é consciência pública, é integração do povo na vida do Estado. É a conquista do progresso sem violência, sem intolerância, sem atos criminosos. Obra do homem para os homens, com virtudes ou defeitos, ocasionando enganos ou desenganos, é a única solução para o processo de desenvolvimento e para o bem-estar da macrossociedade. A fundamentação dos princípios constitucionais se situa na atividade legislativa não ilimitada e discricionária. No específico âmbito jurídico-penal encontram-se: a) princípios e critérios normativos que delimitam o poder punitivo do Estado; b) princípios jurídicos de correlação entre o direito penal e o ordenamento jurídico em conjunto; c) princípios singulares estruturais de fundamentação e legitimação do direito penal. Como consequência, de um lado, tem-se a inexistência de limites jurídicos, de outro, a legitimidade de sua validade que requer limitações normativas que tenham patamar em exigências axiológicas. O direito penal para fugir do fracasso necessita de previsões normativas que se fundamentem nas efetivas exigências de inter-relações pessoais na convivência social. É por natureza um ordenamento legal e juridicamente limitado a duas facetas, sujeito a garantias normativas e garantidor de direitos e liberdades. Seus limites normativos, de conformidade com os princípios constitucionais que fundamentam o direito de punir, apresentam várias índoles: a) limites jurídico-constitucionais em sentido estrito, que emanam de valores superiores do ordenamento positivo, transcendem a esfera de âmbito do direito penal; b) limites objetivos funcionais, que derivam da própria natureza da coisa e de sua própria finalidade, pois em tal esfera se desenvolve toda a sua virtualidade; c) limites estruturais que são deduzidos de singulares princípios gerais informadores do ordenamento jurídico-penal.

 

6. O direito de punir do Estado responde ao desvalor de um resultado e de uma ação afeta a um bem jurídico e princípio da intervenção mínima configura um dos marcos limitativos do controle social. A seleção dos bens jurídicos é ditada pelo princípio da intervenção mínima. O verdadeiro poder do sistema penal não é repressivo, mas sim, disciplinador, arbitrário e seletivo. A prevenção especial é a espinha dorsal do sistema penal. Os limites do sistema penal são os limites da macrossociedade. Ferrajoli alinha os princípios das garantias penais e processuais (modelo garantista): a) princípio da retribuidade (consequência da pena perante o delito); b) princípio da legalidade / modelo regular, sentido lato e estrito; c) princípio da necessidade ou da economia do direito penal; d) princípio da materialidade ou exterioridade da ação; e) princípio da lesividade ou ofensividade; f) princípio da culpabilidade ou da responsabilidade pessoal; g) princípio da jurisdicionalidade; h) princípio acusatório ou da separação entre juiz e a acusação; i) princípio do contraditório ou da verificação; e, j) princípio do contraditório ou da falseabilidade. Ao decorrer destas reflexões principiológicas, destacaria o princípio da ressocialização, pois a pena não pode ser uma ferramenta de uso arbitrário-oportunista. No Estado de Direito a sua legitimação material é específica, constitui-se em uma função preventiva geral estando, teoricamente, direcionada para o cumprimento da função preventiva especial por meio da inserção social do apenado. Junto ao ordenamento jurídico em conjunto estão os princípios de relevância em outras instâncias normativas que caracterizam o direito penal: a) princípio da intervenção mínima e necessária subsidiariedade. Objetivando possibilitar a convivência social atua subsidiariamente às instâncias formais e informais de controle e prevenção, diante do tripé: cominação - aplicação - execução da pena, buscando garantir o mínimo tolerável de conflito, razão pela qual serve subsidiariamente à proteção dos bens jurídicos. A subsidiariedade é derivada do princípio de intervenção mínima, isto é, a intervenção estatal através do direito penal. Só deverá ocorrer quando da comprovada a ineficácia dos outros instrumentos de controle social. Deve-se destacar o princípio de humanidade ou respeito à dignidade pessoal, que reúne várias facetas, como salva guardas da humanidade diante de toda intervenção punitiva geral, compreensiva das dimensões tanto valorativas (a própria natureza e conteúdo da pena) quanto teleológicas (fim perseguido pela pena) como forma e execução (humanidade da execução). O caráter do princípio de humanidade abarca o princípio de intervenção penal em seu conjunto. Toda intervenção punitiva no Estado social e democrático de Direito deve ser guiada pelo princípio de respeito à dignidade humana – princípio que expressa um critério que é fundamento e guia de toda ação punitiva estadual (rerus sacra est). A fecunda iluminação ideológica libera trouxe a consciência da necessidade de respeito à pessoa do apenado repudiando o trato degradante a pessoa humana detida. Ficam abolidas as penas corporais e simbólicas existentes em tempos históricos que impedem a reinserção social (de morte e perpétua).

 

7. Há um movimento oportunista, defendendo penas inoculadoras ou exemplificadoras, que por seu caráter negativo são consideradas desumanas e degradantes e, portanto, inconstitucionais. Na perspectiva formal e executiva a humanidade ou respeito pela dignidade humana deve também estar presente na execução das próprias penas, o que significa estabelecimentos penitenciários com estrutura e funcionamento adequados ao perfil do encarcerado para atingir seu objetivo finalístico. Não se admite na execução da pena a imposição de sofrimentos de especial intensidade ou que provoquem uma humilhação ou sensação de aviltamento. Destaca-se o princípio da proporcionalidade ou proibição do excesso. Todos os atos delitivos devem ser punidos com uma resposta estatal justa, oportuna e proporcional a gravidade da ação singularmente considerada. Em um Estado Democrático de Direito há restrição no âmbito legiferante das leis penais. Baratta sustenta que o ponto vital da orientação minimizadora se radica na injustiça e inutilidade da pena, cuja função seria a reprodução das regras de domínio já existentes recaindo sobre os decaídos. Busca desenvolver uma teoria da minimização da intervenção tomando como ponto de referência os direitos humanos e acredita em uma visão conflitiva de nosso modelo social. Sua proposta não coincide com Ferrajoli, sobre o direito penal mínimo, que denomina de garantista, cognitivo ou de estrita legalidade. O minimalismo tem sido associado às posturas defendidas pela denominada Escola de Frankfurt do direito penal, prevendo sua restrição a um direito penal básico que tenha por objeto as condutas atentatórias à vida, à saúde, à liberdade e à propriedade, com manutenção das máximas garantias na lei, na imputação da responsabilidade e no processo. Surge sob tal ótica a evolução do direito penal oficial como uma cruzada contra o mal, desprovida de mínima fundamentação racional. O incremento essencial de valor diante da evolução sociocultural (patrimônio histórico-artístico), a defesa de bens coletivos e interesses difusos mostram um espaço razoável de expansão do direito penal.

 

8. Nada tem a ver a tendência expansiva do direito penal na década de 70 respaldada inicialmente no movimento americano de lei e ordem que se dirigia a reclamar uma reação legal, jurídica e policial mais coerente contra os fenômenos de delinquência de massa da criminalidade das ruas. O movimento é o último exemplo de concepção conservadora do direito penal, (segurança dos cidadãos em casa, no trabalho e nas ruas). Nos tempos atuais através de uma ótica distorcida, propugna pela intensidade da resposta penal. Ao invés da tendência de sua expansão orienta-se na direção do estímulo às suas virtudes como instrumento de proteção aos cidadãos. Nem as premissas ideológicas, nem os requerentes do movimento de lei e ordem desaparecem, pois estão integrados em um novo consenso social sobre o papel do direito penal. Surgem novos interesses e o papel qualificado de proteção dos bens jurídicos relevantes, diante de novas realidades. A busca de um ponto de equilíbrio que não significa em direito penal de emergência a renúncia aos postulados garantistas. Colhem-se como conclusões que deve ser mantido o modelo de direito penal mínimo, diante do racionalismo jurídico, garantista com limites ou proibições, presidido pelo Estado Democrático de Direito, isto é, um tipo de ordenamento no qual o Poder Público, em especial o ius puniendi, esteja rigidamente limitado e vinculado às leis e à Constituição. É certo que o direito penal é racional na proporção da previsibilidade da intervenção estatal, afastando-se a aspiração autoritária. Nem a incerteza do ato, nem a incerteza do Direito.

 

9. Deve-se ter em mente que o direito penal necessita manter seus laços com as mudanças sociais. Ele precisa ter respostas prontas para as perguntas de hoje, e não pode sempre retroceder a um puritanismo de ontem, perdendo-se em problemas sobre a norma e sua violação. Precisa continuar desenvolvendo-se em contato com a sua realidade. A questão decisiva, porém, será de quando de sua tradição deverá abrir mão a fim de manter esse contato. Essa questão será afinal decidida politicamente, o que significa, no que diz respeito, sem influência significativa das ciências penais, ainda assim, elas têm a chance (e a tarefa) de produzir ou de desenvolver alguns topoi mínimos, que sem uma observância, uma decisão política, não deveria ser legitimamente adotada. Entre essas bases mínimas, inclui-se com destaque a difusão da atitude de dever às garantias penais e processuais do Estado de Direito não como relíquias de um formalismo ultrapassado, e sim, como requisitos de sua legitimação.



 

[1] Doutorado (UEG). Professor Emérito da EMERJ. Desembargador (aposentado) do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro.

[2] Félix Oppenheim (1874-1938) registra que o conceito de liderança contemporaneamente tem uma acepção muito diversa a que tinha na história do pensamento desde Platão (428-328 a.C.). Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) entende a liberdade não mais como a liberdade de agir na esfera do possível e sim na obrigação de agir da maneira ordenada pela autoridade. Enfim, a liberdade não significa que o Estado precisa ser sensível à vontade dos cidadãos, e sim que os cidadãos têm a obrigação de obedecer às normas governamentais que traduzem e refletem a vontade da maioria da sociedade. A democracia exige que as liberdades civis sejam protegidas por direitos igualmente definidos e por deveres a eles correspondentes.

[3] Aurelius Hermogenianus, ou Hermogenian, foi um eminente antigo jurista romano e funcionário público da era de Diocleciano (245-311) e seus companheiros tetrarcas.

[4] Os realistas não contestavam a existência do direito positivo.

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