Álvaro Mayrink da Costa[1]
A contribuição do direito penal para a igualdade de gênero, diante do alargamento preventivo e punitivo da contemporânea legislação brasileira
1. O legislador, diante do quadro fático, viu-se obrigado a fundamentar a opção normativa de um novo tipo penal, objetivando conferir maior proteção à mulher, por ser do sexo feminino, e a ratio do feminicídio é matar a mulher por sua condição específica. Crescem todas as modalidades de violência contra a mulher: a) ameaças (medidas protetivas de urgência, agressões decorrentes de violência doméstica, stalking, violência psicológica, tentativa de homicídio, tentativa de feminicídio e feminicídio); b) violência sexual (importunação sexual, assédio sexual, divulgação de cena de estupro/sexo/pornografia). Combate-se a violência doméstica e familiar, repetindo-se o art. 5º da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (denominada Lei Maria da Penha), nos seguintes termos: “Art. 5º Para os efeitos desta Lei, configura violência doméstica e familiar contra a mulher qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial: I - no âmbito da unidade doméstica, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar, inclusive as esporadicamente agregadas; II - no âmbito da família, compreendida como a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa; III - em qualquer relação íntima de afeto, na qual o agressor conviva ou tenha convivido com a ofendida, independentemente de coabitação. Parágrafo único. As relações pessoais enunciadas neste artigo independem de orientação sexual”. O Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula nº 600, nos seguintes termos: "Para configuração da violência doméstica e familiar prevista no artigo 5º da lei 11.340/2006, lei Maria da Penha, não se exige a coabitação entre autor e vítima."
2. As formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras, vislumbram-se nos termos do art. 7º da Lei nº 11.340/2006: “I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal; II - a violência psicológica, entendida como qualquer conduta que lhe cause dano emocional e diminuição da autoestima ou que lhe prejudique e perturbe o pleno desenvolvimento ou que vise degradar ou controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, vigilância constante, perseguição contumaz, insulto, chantagem, violação de sua intimidade, ridicularização, exploração e limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que lhe cause prejuízo à saúde psicológica e à autodeterminação; III - a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos; IV - a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades; V - a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria.”
3. A Lei nº 14.994, de 9 de outubro de 2024, “Altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), o Decreto-Lei nº 3.688, de 3 de outubro de 1941 (Lei das Contravenções Penais), a Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal), a Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990 (Lei dos Crimes Hediondos), a Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha) e o Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), para tornar o feminicídio crime autônomo, agravar a sua pena e a de outros crimes praticados contra a mulher por razões da condição do sexo feminino, bem como para estabelecer outras medidas destinadas a prevenir e coibir a violência praticada contra a mulher.” O legislador, ao criar um tipo autônomo, teve como escopo dar maior visibibilidade ao combate à criminalidade que tem como sujeito passivo específico a mulher. Assim, criou o art. 121-A do Código Penal com a seguinte redação: “Matar mulher por razões da condição do sexo feminino: Pena – reclusão, de 20 (vinte) a 40 (quarenta) anos. § 1º Considera-se que há razões da condição do sexo feminino quando o crime envolve: I – violência doméstica e familiar; II – menosprezo ou discriminação à condição de mulher. § 2º A pena do feminicídio é aumentada de 1/3 (um terço) até a metade se o crime é praticado: I – durante a gestação, nos 3 (três) meses posteriores ao parto ou se a vítima é a mãe ou a responsável por criança, adolescente ou pessoa com deficiência de qualquer idade; II – contra pessoa menor de 14 (catorze) anos, maior de 60 (sessenta) anos, com deficiência ou portadora de doenças degenerativas que acarretem condição limitante ou de vulnerabilidade física ou mental; III – na presença física ou virtual de descendente ou de ascendente da vítima; IV – em descumprimento das medidas protetivas de urgência previstas nos incisos I, II e III do caput do art. 22 da Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006 (Lei Maria da Penha); V – nas circunstâncias previstas nos incisos III, IV e VIII do § 2º do art. 121 deste Código. Coautoria. § 3º Comunicam-se ao coautor ou partícipe as circunstâncias pessoais elementares do crime previstas no § 1º deste artigo.” Com a edição da Lei nº 14.994/2024, conforme expresso no seu art. 6º, o crime de feminicídio passou a ser classificado como hediondo, estando disposto no art. 1º, I-B, da Lei nº 8.072/90.
4. O elemento subjetivo deve ser realizado por motivo pertinente à condição do sexo feminino. Desta forma, o feminicídio é incompatível com a figura do privilégio descrita no art. 121, § 1º, do Código Penal. O Superior Tribunal de Justiça, abordando o tema, da grave situação de violência praticada contra a mulher nos nossos tempos por relação de poder e submissão, no voto do ministro Marco Aurélio Bellizze, bem descortinou o tema: “Não podemos perder de vista os aspectos históricos e sociais que criaram condições propícias para a discriminação de gêneros hoje vigente e que necessitam ser eliminados do contexto social. Deve-se reconhecer que a violência de gênero é um evento sociológico e epidemiológico, fruto da diferença de poder entre homens e mulheres, dos distintos papéis sociais atribuídos a cada gênero e da subordinação histórica das mulheres. A violência de gênero é, pois, fruto da discriminação contra as mulheres, ao passo que as relações horizontalizadas e o machismo são determinantes para a aceitação social dessa violência” (STJ, 175.116/RS, 5ª T., rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 20.6.2013).
5. A Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), quando trata da situação de violência doméstica e familiar, no § 4º do art. 9º menciona: “Aquele que, por ação ou omissão, causar lesão, violência física, sexual ou psicológica, e dano moral ou patrimonial à mulher, fica obrigado a ressarcir todos os danos causados ao Sistema Único de Saúde”. O § 6º estatui que: “O ressarcimento não poderá importar ônus de qualquer natureza ao patrimônio da mulher e dos seus dependentes, nem configurar atenuante ou ensejar a possibilidade de substituição da pena aplicada”. No que pertine ao descumprimento das medidas protetivas de urgência, dispõe o art. 24-A: “Descumprir decisão judicial que defere medidas protetivas de urgência pune-se com a pena de detenção, de 3 (três) meses a 2 (dois) anos. A configuração do crime independe da competência civil ou criminal do magistrado que deferiu a medida protetiva de urgência”.
6. A 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu, por unanimidade, que a Lei Maria da Penha pode ser aplicada para proteger mulheres transexuais, vítimas da violência doméstica. Os ministros entenderam, no entanto, que o art. 5º da lei caracteriza a violência doméstica e familiar contra a mulher como qualquer ação ou omissão baseada no gênero, sem envolver aspectos biológicos. O ministro Rogério Schietti ressaltou que a causa transcende os interesses individuais e que o país é palco de um grande número de homicídios de pessoas transexuais, reflexo de uma cultura misógina. Acrescenta que os dados são impressionantes, porque refletem comportamento predominante que não aceita identidades outras que aquelas que a nossa cultura e formação nos levou a definir, até por questões religiosas, como identidades relacionadas tão somente ao sexo, característica biológica. O relator concluiu dizendo que o que se discute é a possibilidade de uma lei que veio para proteger a mulher possa também abrigar assim quem se define, se identifica.
7. A Câmara de Deputados, no início da legislatura de 2024, aprovou catorze projetos de defesa das mulheres. O pacote inclui a criação do protocolo “Não é não”, para coibir intimidações e violências nos bares, restaurantes e casas de shows, e a criminalização de divulgação de montagens de fotos e vídeos íntimos sem autorização. As imagens deverão ser preservadas por trinta dias. O texto foi para análise do Senado Federal. Em tempo: a punição poderá variar entre 1/3 (um terço) e até a metade da pena, quando a lesão for contra uma mulher “na presença física ou virtual de descendente ou ascendente”, como pais e mães da vítima. Atualmente, a reclusão varia de 1 (um) a 4 (quatro) anos. Quando cometida contra ascendente, descendente ou cônjuge, pode aumentar em 1/3 (um terço). O texto foi para o Senado. A Câmara também aprovou a permissão para que magistrados tenham a permissão de decretar medidas contra crimes da Lei Maria da Penha, sem precisarem ser requeridas pelo órgão do Ministério Público, pela defesa da vítima ou pela polícia, e assim converter a prisão em flagrante em prisão preventiva, proibir o agressor de manter contato com a vítima e determinar que o acusado use tornozeleira eletrônica. Com o advento da edição da Lei nº 14.994/2024, o legislador unificou texto que abordou todos os projetos que estavam em curso.
8. No que concerne às medidas protetivas de urgência, tem-se: a) proibição de contato; b) afastamento do acesso da residência e do local de conveniência ou habitação; c) prisão preventiva do agressor, quando houver suficientes indícios de ameaça à criança ou adolescente vítima de violência; d) no caso de impossibilidade de afastamento do lar do agressor ou de prisão, a remessa do caso para o juizado competente, a fim de avaliar a necessidade de acolhimento familiar, institucional ou acolhimento em família substituta; e) poderá a autoridade policial requerer ao Ministério público a propositura de ação cautelar de antecipação de provas, se as circunstâncias existirem; f) o magistrado poderá determinar a adoção de outras medidas cautelares, nos casos de violência doméstica e familiar contra a criança e o adolescente. No que tange ao crime de descumprimento das medidas protetivas de urgência, a Lei nº 13.641/2018 incluiu o art. 24-A da Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), tendo sido a cominação da pena alterada pela Lei nº 14.994/2024, no sentido de reprovar a conduta, com a pena de reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa. Recorde-se a tese acolhida pelo Superior Tribunal de Justiça: “A vedação constante do art. 17 da Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) obsta a imposição, nos casos de violência doméstica e familiar contra mulher, de pena de multa isoladamente, ainda que prevista de forma autônoma no preceito secundário do tipo penal imputado” (STJ, REsp 2049327/RJ, 3ª S., rel. Min. Sebastião Reis Junior, j. 14.6.2023).
9. Com a edição da Lei nº 14.994/2024, a pena cominada ao crime de feminicídio passou a ser de reclusão, de 20 (vinte) a 40 (quarenta) anos. A pena do feminicídio é aumentada, de 1/3 (um terço) até a metade, se o crime é praticado: I – durante a gestação, nos 3 (três) meses posteriores ao parto ou se a vítima é a mãe ou a responsável por criança, adolescente ou pessoa com deficiência de qualquer idade; II – contra pessoa menor de 14 (catorze) anos, maior de 60 (sessenta) anos, com deficiência ou portadora de doenças degenerativas que acarretem condição limitante ou de vulnerabilidade física ou mental; III – na presença física ou virtual de descendente ou de ascendente da vítima; IV – em descumprimento das medidas protetivas de urgência previstas nos incisos I, II e III do caput do art. 22 da Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha); V – nas circunstâncias previstas nos incisos III, IV e VIII do § 2º do art. 121 do Código Penal.
10. A Lei nº 14.994/2024 alterou a Lei nº 7.210/84 (Lei de Execução Penal), que passou a vigorar com seguinte redação: a) “Art. 41, § 2º. O preso condenado por crime contra a mulher por razões da condição do sexo feminino, nos termos do § 1º do art. 121-A do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), não poderá usufruir do direito previsto no inciso X em relação à visita íntima ou conjugal”; b) “Art. 86, § 4º. Será transferido para estabelecimento penal distante do local de residência da vítima, ainda que localizado em outra unidade federativa, inclusive da União, o condenado ou preso provisório que, tendo cometido crime de violência doméstica e familiar contra a mulher, ameace ou pratique violência contra a vítima ou seus familiares durante o cumprimento da pena”; c) “Art. 112, VI-A. 55% (cinquenta e cinco por cento) da pena, se o apenado for condenado pela prática de feminicídio, se for primário, vedado o livramento condicional”; d) “Art. 146-E. O condenado por crime contra a mulher por razões da condição do sexo feminino, nos termos do § 1º do art. 121-A do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), ao usufruir de qualquer benefício em que ocorra a sua saída de estabelecimento penal, será fiscalizado por meio de monitoração eletrônica”.
11. A ação penal é de iniciativa pública. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida, de que trata a Lei nº 11.340/2006, só será admitida a renúncia à representação perante o magistrado, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público. É vedada a aplicação, nos casos de violência doméstica e familiar contra a mulher, de penas de cesta básica ou outras de prestação pecuniária, bem como a substituição da pena que implique o pagamento isolado da multa. A Lei nº 14.994/2024 alterou o texto, dando ao art. 394-A a seguinte redação: “Os processos que apurem a prática de crime hediondo ou violência contra a mulher terão prioridade de tramitação em todas as instâncias. § 1º Os processos que apurem violência contra a mulher independerão do pagamento de custas, taxas ou despesas processuais, salvo em caso de má-fé. § 2º As isenções de que trata o § 1º deste artigo aplicam-se apenas à vítima e, em caso de morte, ao cônjuge, ascendente, descendente ou irmão, quando a estes couber o direito de representação ou de oferecer queixa ou prosseguir com a ação”. Por fim, foram revogados o inciso VI do § 2º e os §§ 2º-A e 7º, todos do art. 121 do Código Penal.
[1] Doutorado (UEG). Professor Emérito da EMERJ. Desembargador (aposentado) do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Presidente do Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro (2001-2003).
Comments