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Foto do escritorÁlvaro Mayrink *

O valor da democracia

Atualizado: 31 de out.


A noção de democracia, como sinônimo de participação, respeito pela vontade do povo, reconhecimento de direitos políticos e autodeterminação por meio de eleições livres, é uma garantia contra qualquer suspeita de autoritarismo, ditadura ou absolutismo. Falar em democracia é fácil, o que se torna difícil é viver na democracia. A democracia é sempre absoluta, jamais relativa

 

Álvaro Mayrink da Costa[1]


 

1. Edmund Gustav Albrecht Husserl (1859-1938), filósofo alemão, fundador da escola de fenomenologia, pontua que um novo espírito crítico, livre e de normatização, surgido da filosofia e de suas disciplinas e orientado para realizar múltiplas tarefas, domina o homem e cria novos ideais humanos.[2] As necessidades políticas da sociedade se tornam necessidades e aspirações individuais, sua satisfação promove os negócios e a comunidade, e o conjunto parece constituir a própria personificação da razão. Sustenta que não obstante, essa sociedade é irracional como um todo. Sua produtividade é destruidora do livre desenvolvimento das necessidades e faculdades humanas; sua paz, mantida pela constante ameaça de guerra; seu crescimento, dependente da repressão das responsabilidades reais de amenizar a luta pela existência (individual, racional e internacional).

 

2. Carlo Bordoni (1946), sociólogo italiano e professor da Universidade Telemática Mercatorum de Roma, abordando a Modernidade em Crise, cita que a pós-modernidade subestimou as promessas da modernidade, preenchendo os espaços com brilhos, imagens, cores e sons, substituindo a substância por aparências e valores por participação. Giza que depois do terremoto de Lisboa, de 1755, o espírito da modernidade tentou subordinar desastres e sua imprevisibilidade ao poder da razão, por meio do trabalho de prevenção sobre uma base científica.[3] Indaga se existe uma crise de democracia. Responde que, na realidade, nunca houve uma era de ouro na democracia. A própria ideia de democracia é vaga e flutuante, às vezes, indefinível em sua complexidade. O termo “democracia” teria sido tão esvaziado em seu sentido original – governo do povo pelo povo – que é considerado com ceticismo cada vez mais fatigado. Cita que Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) se refere à democracia no verdadeiro sentido ateniense, na época de Péricles (492-429 a.C.), a qual já tinha sérios problemas de compatibilidade com a ideia de liberdade. Conclui que segundo as palavras de Rousseau, a democracia não existe e jamais existirá se considerarmos o termo em seu sentido real – “governo do povo”. Aduz que a transformação no sentido corrente da ideia de democracia se deve a Alexis de Tocqueville (1805-1859) que, em Democracy in America, foi o primeiro a renunciar ao seu conteúdo etimológico, dando um significado mais amplo, de natureza social, uma ideia de igualdade e uma tendência à extinção generalizada de um conjunto de direitos e deveres. Em regimes monárquicos ou oligárquicos, despóticos e absolutistas, o significado de democracia é refletido como substituição do poder do povo pelo de uma pessoa ou de uma minoria. Corretamente pontua que, para o fascismo e o nazismo, a democracia, assim entendida, era uma ameaça mais séria a ser enfrentada por toda e qualquer forma de civilização. A história registra que, em todo sistema político em declínio, os princípios legais continuam válidos e protegidos pelo Estado, mas são solapados a partir de dentro pela corrupção crescente e endêmica e, por fora, pela perda de confiança do eleitorado. Assim, a noção de democracia, como sinônimo de participação, respeito pela vontade do povo, reconhecimento de direitos políticos e autodeterminação por meio de eleições livres é uma garantia contra qualquer suspeita de autoritarismo, ditadura ou absolutismo. Falar em democracia é fácil, o que se torna difícil é viver na democracia. A democracia é sempre absoluta, jamais relativa.

 

3. No século XXI, vê-se a luta para manter o estado democrático contra os golpes da direito antidemocrática. Bordoni escreve que os piores crimes da modernidade foram cometidos em nome da ideologia. A violência baseada na ideologia é sempre justificada, pois pode ser explicada como defesa contra uma ameaça pior. Joseph Schumpeter (1883-1950), em Capitalismo, Socialismo e Democracia (1942), contrapõe a doutrina clássica de democracia, segundo a qual consiste na realização do bem comum através da vontade geral que exprime uma vontade do povo ainda não perfeitamente identificada, uma doutrina diversa da democracia que leva em resultado considerado realisticamente inexpugnável pela teoria das elites. Resume que só existe democracia onde há vários grupos em concorrência pela conquista do poder, através de uma luta que tem por objeto o voto popular.

 

4. Norberto Bobbio (1909-2004), filósofo político italiano, no Dizionário di Política, escreve sobre o significado formal de democracia e salienta que “A democracia é compatível, de um lado com doutrinas de diverso conteúdo ideológico, e por outro lado, com uma teoria, que em algumas de suas expressões, e certamente e m sua motivação inicial, teve uma conteúdo nitidamente antidemocrático, precisamente porque veio sempre assumindo um significado essencialmente comportamental e não substancial, mesmo se a aceitação destas regras, e não de outras, pressuponha uma orientação favorável para certos valores, que normalmente considerados característicos do ideal democrático, como o da solução pacífica dos conflitos sociais, da eliminação da violência institucional no limite do possível, do frequente revezamento da classe política, da tolerância e assim por diante”. Traça o endereço distintivo ao diferenciar nas duas expressões “democracia formal” e “democracia substancial” os dois significados nitidamente distintos de democracia. Para Bobbio, a democracia formal “indica certo número de meios que são precisamente as regras de comportamento e independentemente da consideração dos fins”. Já a democracia substancial “indica certo conjunto de fins, entre os quais sobressai o fim da igualdade jurídica, social e econômica, independentemente dos meios adotados para os alcançar”.

 

5. Karl Mannheim (1893-1947), antigo professor de Sociologia da Universidade de Frankfurt, em seu Diagnosis of our Times (1954), escreve sobre a crise dos valores que vive em uma época de transição do laissez-faire para uma sociedade planificada. Defende que a sociedade planificada que surgirá poderá revestir-se de uma dentre duas formas: a) regida quer por uma minoria em condições ditatoriais, b) por uma nova forma de governo que, a despeito de seu poder acrescido, ainda será democraticamente controlada. Sustenta que as principais mudanças podem ser atribuídas ao fato de se buscar uma sociedade de massas. O governo das massas não pode ser exercido sem uma série de invenções e aperfeiçoamentos no campo das técnicas econômicas, políticas e sociais. Não é, porém, unicamente, o princípio abstrato de democracia que deve ser salva, assim como refundido em novo molde. A demanda crescente de justiça social tem de ser satisfeita, caso se queira garantir o funcionamento da ordem social. A atuação do sistema econômico existente tende a incrementar, as diferenças de renda e de riqueza entre as várias classes, a tal ponto que criará insatisfação e tensão social continua. Mannheim advoga que o funcionamento da democracia baseia-se, essencialmente, no consentimento democrático, o princípio de justiça social não é apenas uma questão de ética, mas também uma precondição do funcionamento do próprio sistema democrático. A reivindicação de maior justiça não implica, forçosamente, uma concepção mecânica de igualdade. Diferenças razoáveis de renda e de acumulação de riqueza, para gerar o estimulam necessário aos empreendimentos, podem ser mantidas desde que não interfiram nas linhas mestras do planejamento nem aumentem de modo a impedir a cooperação entre as diferentes classes.

 

6. O liberalismo de laissez-faire equivocou-se, tomando neutralidade por tolerância. No entanto, a tolerância democrática e a objetividade científica não significam que se deve abster de assumir a defesa daquilo que se julga ser verdadeiro ou que se deva evitar debates acerca dos valores e objetivos últimos da vida. Mannheim lembra que significado da tolerância é que todos devem ter uma justa oportunidade de expor suas razões, mas que ninguém nunca deva acreditar ardorosamente em suas próprias razões. Essa atitude de neutralidade em nossa democracia moderna chegou a tal ponto, que se deixa de acreditar, só para ser imparcial, na defesa dos próprios objetivos; não mais se imagina que o ajustamento pacífico é desejável, que a liberdade pode ser salva e que o controle democrático tem de ser mantido. Reclama, nossa democracia tem de tornar-se militante para poder sobreviver. Está claro, há uma diferença fundamental entre o espírito de luta dos ditadores, de um lado, que visam a impor um sistema total de valores e uma democracia militante, só se torna militante, na defesa dos procedimentos corretos e aprovados de mudança social, assim como das virtudes e valores básicos (ajuda mútua, decência, justiça social, liberdade, respeito pela pessoa humana), que constituem a base do funcionamento pacífico de uma ordem social. A nova democracia militante será diferente do laissez-faire relativista da época anterior, pois terá a coragem de admitir certos valores básicos que são aceitáveis para todos os que partilham das tradições da civilização ocidental. O desafio do sistema nazista, mais do que qualquer outra coisa, tornou a todos conscientes para o fato de que as democracias têm um patrimônio comum de valores básicos, herdado da antiguidade clássica e, ainda mais, do cristianismo, e que não é demasiadamente difícil enunciá-los e reconhecê-los. Porém, a democracia militante aceitará do liberalismo a crença de que em uma sociedade moderna altamente diferenciada, é melhor deixar os valores mais complexos em aberto para as crenças, a escolha individual ou o livre ensaio.

 

7. A crise da democracia e do liberalismo (não confundir com o conservadorismo populista) desvendaria os olhos dos países que desfrutam de liberdade para algumas das ciências de seu sistema diante das condições modificadas do mundo. A democracia e a liberdade só podem ser compreendidas ao se estudar a transformação gradativa dos antigos Estados totalitários, jamais com a intenção de imitar seus métodos, mas de descobrir as causas dessas mudanças estruturais que fizeram da ditadura uma das respostas imagináveis para a situação do mundo moderno. Só se pode esperar encontrar soluções de acordo com ideais democráticos, se souber por que as sociedades democráticas, que não logram fazer em razão da nova situação foram levadas a aceitar o sistema ditatorial. Embora as causas que conduziram ao colapso delas tenham sido bem complexas e a culpa coubesse primordialmente aos defeitos de ordem econômica e política moderna, ninguém pode negar que a carência de resistência mental desempenhou papel considerável nesse desmoronamento. Não só o sistema educacional daqueles países era inadequado para a educação de massas, mas os processos psicológicos que agiam fora da escola eram deixados sem qualquer controle social e, por isso, forçosamente, levaram à desintegração. As forças que estão transformando toda a estrutura da sociedade no mundo globalizado têm que indagar se de fato estarão em melhores condições com respeito a seu sistema educacional. Defende Manheim que os governos democráticos buscam descobrir formas satisfatórias de controle social para substituir uma cultura de comunidade que se desvanece, ou novas técnicas psicológicas para lidar com as necessidades da sociedade de massas. Só se poderá evitar um colapso psicológico generalizado, se formos bastante sagazes para perceber a natureza da nova situação e para redefinir, em consequência, os fins e os meios da educação democrática.

 

8. Na fase atual de desenvolvimento, a liberdade só pode ser alcançada se as condições forem organizadas de acordo com os desejos democraticamente expressos da comunidade. Estes últimos só poderão se impor se a comunidade tiver uma visão dos objetivos a serem alcançados e um conhecimento dos meios pelos quais o podem ser. O planejamento para a liberdade consistirá em evitar interferir no que for evitável, mesmo assim haverá necessidade de acordo quando não houver uma direção. Essa orientação só pode ser dada se a integração da comunidade for muito mais profunda para acentuar as diferenças existentes. Outra razão pela qual, movimentos religiosos e similares propagam-se atualmente é que a transição só se pode dar se as atitudes dos homens, todo o seu conjunto de valores, mudarem em tempo relativamente reduzido. Ora, é uma realidade psicológica que uma mudança assim repentina de hábitos só pode ter lugar se acompanhada de entusiasmo ou de uma emocionalização dos novos fins, e isto só acontece quando as questões cruciais do cotidiano da vida podem ser redefinidas e adquirem nova significação. Essa redefinição das questões em nosso mundo não ocorre de maneira fragmentária, e a revaloração geral só pode concretizar-se cada novo objetivo for parte de uma nova visão e de um novo estilo de vida. Não se pode afastar na avaliação da criminalidade a baixa escolaridade por parte substancial da população em idade ativa limitada no aproveitamento do bônus demográfico. É política criminal a inclusão produtiva dos filhos dos mais pobres, através do acesso às escolas públicas de qualidade, nas políticas sociais que complementam o papel da escola.

 

9. Não é somente a estrutura econômica que define o âmbito dos futuros padrões de comportamento, mas também a estrutura social e política da sociedade. Dispõe que formas de poder existirão ou deverão existir, e como o poder deverá ser distribuído e controlado. Devem-se abordar essas questões prementes de maneira realista. Em vez de ser realista, essa é a abordagem do utopismo anarquista, que contesta de plano a necessidade do poder e imagina ser viável erguer a sociedade com base unicamente do auxílio mútuo e da cooperação. A abordagem oposta é igualmente insatisfatória e fica aquém da realidade: a atitude conservadora que mais ou menos complacentemente aceita as formas existentes de opressão social e política, e não procura mudar as técnicas sociais hoje empregadas. Não se pode deixar de refletir sobre o controle social, que se entende pelo conjunto de meios de intervenção, quer positivas, quer negativas, acionados por cada sociedade ou grupo social no sentido de induzir os seus membros a se conformarem com as normas regentes. O sistema normativo visa impedir e desestimular os comportamentos desviantes e restabelecer condições de conformação em relação a uma mudança do sistema normativo.[4] Aliás, no curso da história, cada sociedade ou grupo tende a modificar os mecanismos de controle social a que faz recurso para garantir a paz pública e a segurança social. Franco Garelli (1945) escreve que “na carência de amplas perspectivas políticas na diversificação de interesses já consolidados, na crise de representação de grupos de referência, o problema do controle social se torna um problema de regulamentação de interesses e de pressões de vários grupos”.[5] Não se podem esquecer os movimentos sociais, tema debatido e controverso, que ocupa lugar central na teoria e na reflexão sociológica, quer dos contemporâneos, quer dos clássicos.

 

10. Finalizo, lembrando advertência do ilustre Cezar Augusto Rodrigues Costa, no que tange ao controle do poder econômico nas eleições, concluindo, objetivamente, que “é a ditadura da burguesia”.



 

[1] Doutorado (UEG). Professor Emérito da EMERJ. Desembargador (aposentado) do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Presidente do Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro (2001-2003).

[2] HUSSERL, Edmund. Die Krisis der europäischen Wissenschaften und die transzendentale Phcinomenologie, Den Haag, 1954.

[3] BAUMAN/BORDONI, Espaço em Crise, trad. Renato Aguiar, Rio de Janeiro, Zahar, 2016, p. 70.

[4] Vê-se que a criminologia sempre direciona seu discurso na busca das raízes do delito para o controle da criminalidade, objetivando a defesa social, e oferece subsídio ao direito penal e à execução da pena.

[5] GURVITCH, G. Le Contrôle Social, in “Le grands problèmes de la sociologie”, P.U.F., Paris, 1957.

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