O autor estuda, reflete e divaga sobre o direito de punir, diante dos princípios da legalidade e da proporcionalidade (arts. 359-L e M, do Código Penal) e analisa o óbice da anistia nos ilícitos de alta gravidade contra as instituições democráticas
Álvaro Mayrink da Costa [1]
1. Ressalte-se a importância da história dos dogmas penais na avaliação da construção do sistema do direito penal. A diferenciação na formação dos conceitos penalísticos distintos do direito privado evoluíram com muita lerdeza. Os glosadores do Corpus Juris justiniano fizeram anotações nos Libri terribilis, resguardando a matéria criminal, onde se traçam as linhas essenciais de um Direito novo, que aprofunda transformações intervencionistas na sociedade. No âmbito político-cultural, oriundo do iluminismo, maturou a escola clássica do direito penal por meio de operações dedutivas dos postulados jusnaturalistas e contratualistas utilizando a categoria dogmática elaborada pelos pós-glosadores, injetando um novo conteúdo político ao velho conceito. Firma-se a atenção aos pressupostos filosóficos da punibilidade, reafirmando seus conceitos de liberdade de valores e da pena retributiva. Com o positivismo filosófico, como reação lógica, surge a escola positiva, negando a liberdade de valores e afirmando um rígido determinismo causal. Sob tal ângulo, a pena retributiva perde todo significado e é substituída pela medida de segurança. Polariza a atuação sobre a personalidade do delinquente e passa a falar em periculosidade da ação. Em 1910, Arturo Rocco (1876-1942) indica o método técnico-jurídico. Na Alemanha nazista e nos países comunistas, pouco influiu na doutrina penalística. Ainda mais recentemente observam-se concepções inspiradas na criminologia radical e no neomarxismo com influência no direito penal. E agora, a tentativa do “uso alternativo do Direito”, do ordenamento jurídico vigente com um sistema jurídico diverso, idealizado como perfeito.
2. O princípio da legalidade traduz a função de garantia individual que possui a lei penal e se apresenta como separação do princípio quid placuit vigorem, que encontra seus alicerces na soberania popular e na separação, correlação e harmonia dos poderes é norma jurídica inscrita em grande parte das legislações modernas, princípio sistemático na elaboração dogmática e postulado que cumpre importante função política e social. Ao tempo das quaestiones perpetuae, onde alguns autores identificam o aparecimento do princípio, teria vigorado a coercitio dos magistrados[2]. Sebastián Soler (1899-1980), no Derecho Penal[3], afirma que a jurisprudência romana não buscava estabelecer a vontade ou o exato conteúdo da norma, mas antes, de forma criativa, compunha uma espécie de mosaicos normativos, os quais determinavam o contínuo surgimento de linhas alternativas ou analógicas de solução. A prevenção de futuros comportamentos criminais é realizada através de duas estratégias: da prevenção geral e da prevenção especial. Para uns, a prevenção se realiza mediante a retribuição como exemplo, dirigindo-se a todos os integrantes da comunidade jurídica, já para outros a prevenção deve ser especial, procurando acirrar a pena sobre seu autor, a fim de que aprenda a conviver sem realizar condutas que perturbem a tranquilidade social. O princípio da prevenção conjuga-se com o princípio dos bens jurídicos confluindo-se em seus efeitos, pois o direito penal desempenha uma tarefa seletiva, valorativa e protecionista de bens jurídicos, enquanto bens e valores da pessoa e da coletividade. Deve ocupar-se só dos ataques intoleráveis aos jurídicos para garantir a indispensável paz social, constituindo-se em um instrumento de controle social formalizado. Como bem salienta Winfried Hassemer (1940-2014), nos Fundamentos del Derecho Penal[4], a formalização evita uma atuação de surpresa, possibilita saber as consequências de sua intervenção e seleciona, limita e estrutura a possibilidade de comportamento do sujeito do injusto. O direito penal é fragmentário, já apontava Karl Binding (1841-1920), no Grundriss des deutschen Strafrechts[5], pois não intervém de modo indistinto, só em casos excepcionais. Os limites da intervenção estatal em relação à sua fragmentação se fincam no consenso social da não impunibilidade diante da intolerabilidade do conflito.
3. Para Francisco Muñoz Conde (1945), no Derecho Penal[6], o caráter fragmentário do direito penal aparece: a) na defesa do bem jurídico contra os ataques de especial gravidade; b) tipificando uma parte da antijuridicidade; c) deixando de punir comportamentos puramente éticos. O direito de punir do Estado responde ao desvalor de um resultado e de uma ação que afeta um bem jurídico, e o princípio da intervenção mínima configura um dos marcos limitativos do controle social. A seleção dos bens jurídicos é ditada pelo princípio da fragmentação, característica do princípio da intervenção mínima[7]. Nem todas as condutas antijurídicas são transgressões penais, mas todos os crimes e as contravenções são comportamentos antijurídicos. Os injustos penais possuem múltiplas consequências jurídicas, porém a única consequência penal é a pena[8]. O ato de subtrair uma coisa alheia móvel dá lugar a uma pena e ao ressarcimento do dano; todavia, a única consequência penal está no primeiro efeito. A coerção penal é distinta da coerção jurídica, visto que objetiva a prevenção especial mediante uma dita ação ressocializadora sobre o autor do ato punível. A pena não pode perseguir outro objetivo que não seja o estatuído pela lei penal. O direito penal busca a proteção dos bens jurídicos e a segurança social para ser atingido o ideal: a paz social. Diante de uma ótica sociológica, o direito penal se configura como um instrumento de controle social, um mecanismo para se obter determinados comportamentos individuais, diminuindo os conflitos macrossociais pautados pela intolerabilidade do grupo dominante. Como instrumento do controle social primário, busca alcançar seus fins através da aplicação de penas diante da realização de condutas proibidas normativamente e, como instrumento de controle social formalizado, se caracteriza pelas garantias à sua atividade regrada.
4. Os mecanismos para atingir a prevenção geral pela via exemplificante são a repressão intimidativa e, por último, a vingança. Tais mecanismos são inconscientes, pois o homem comum proclama sempre “vingança”, e a prevenção geral sempre encerra um conteúdo vingativo. Para enfrentar tal ótica, certo vetor doutrinário sustenta que a pena “justa” é a “retributiva”, na linha do Lex talionis[9]. Surgem duas principais versões: a) a teoria da vingança; b) a teoria da expiação. A teoria da prevenção geral não admite como fins da pena a retribuição ou a sua influência sobre o autor do injusto, só a sua atuação diante da macrossociedade, por meio das ameaças penais e da execução da pena. Não atua especialmente sobre o condenado, mas geralmente sobre a macrossociedade. A denominada teoria psicológica da coação, desenvolvida por Paul Johan Alselm von Feuerbach (1775-1833), no Lehrbuch[10], fundador da moderna ciência do direito penal alemão, visa prevenir o delito mediante normas penais, que são a base de ameaça pessoal. Já na prevenção geral positiva há três fins distintos: a) o efeito de aprendizagem pedagógica; b) o exercício da confiança do Direito, através da prestação jurisdicional, diante dos cidadãos; c) o efeito de confiança, quando observa a não-impunidade. Claus Roxin (1931), no Derecho Penal[11], chama a atenção para o que denomina prevenção integradora. Ainda nos tempos hodiernos há exemplo da defesa feita da pena de morte. O magistrado vitoriano Sir James Fitzjames Stephen (1829-1894), o mais notório e eloquente expoente da teoria da vingança, estranhamente, ao defendê-la, apresenta um ponto de vista de base utilitária. A teoria da vingança trata de todos os delitos como se fossem de violência física, ao passo que a teoria da expiação trata de todos os delitos como se fossem transações financeiras. Hans Welzel (1904-1977), no Das Deutsches Strafrecht[12], a pena é um mal que se impõe ao autor pelo fato culpável (postulado da retribuição justa), fundado em que “cada um sofra o que seus fatos valem” (Kant), isto é, o transgressor normativo deverá sofrer de acordo com o grau de culpabilidade (retribuição adequada à medida da culpabilidade). Escreve que a retribuição justa da infração culpável mostra a todos o desvalor do ato, reforçando o juízo eticossocial. Com isso estabelece a harmonia entre o merecimento da pena e a pena, possibilitando ao autor tomá-la como justa expiação de sua culpa. Seria o único e seguro critério para a sua medição. Conclui que a pena não deve ser entendida apenas, mas vivida e experimentada, como um mal dirigido aos sentimentos, instintos e aspirações, devendo obrigar o autor do ato punível a uma tomada de consciência, a uma vida ordenada, útil socialmente. O agravamento da pena não se fundamenta só na gravidade do ato que se pune, mas também na periculosidade pessoal do autor[13].
5. O Estado Democrático de Direito tem o direito-dever de impor ao condenado as regras básicas de convivência social, sem que isto importe na imposição dos valores da sociedade predominante, objetivando a sua inserção dentro de um sistema jurídico de segurança a fim de garantir a liberdade e a paz social. Contudo, no Brasil, em virtude do “sistema penitenciário”, de efeitos penais deletérios, a pena é puro castigo mental e corporal, que só alimenta a reincidência. Nos dias atuais é inadmissível que se mantenha a sustentação do fim retributivo da pena, quando já se deixou ao passar do tempo, partindo do idealismo filosófico, que a pena se justificaria per se no manto das teorias absolutas (nas teorias de Immanuel Kant – 1724-1804 –, a pena era imposta por um imperativo categórico e sua medida era o talião e, na de George W. F. Hegel – 1770-1831 –, o mal da pena impõe por ser a negação do mal do delito). A transparência conceptiva se impõe e muitos penalistas compartilham a retribuição com a prevenção social, porém todos repudiando a ideia de que a retribuição teria como patamar a justiça absoluta. Francesco Carrara (1805-1888), no Programma del Corso di Diritto Criminale[14], defendia uma postura incorreta, pois se o direito penal tem por escopo a emenda do condenado, não se pode esquecer que é a segurança jurídica que dá a ideia de limite para a inserção, que não se constitui no seu fim, mas em uma das espécies de controle social para a contenção do conflito, caracterizadas pela exigência de formalização (controle normativo). Repita-se que o conflito violento em razão da conduta de desvio fraturando o convívio e a paz social faz presente a pena de prisão e a necessidade da manutenção de uma microssociedade prisional. Repita-se o Código Penal alternativo alemão: “uma amarga necessidade na comunidade de seres imperfeitos que são os homens”. A segurança jurídica determina um limite que se fixa entre o injusto e a culpabilidade, e a medida da pena é o corretivo do desvalor na estrutura típica. O limite é o concreto e não o abstrato e com ressonância no social. Realmente, a segurança jurídica nada tem a ver com o castigo, a reparação, a retribuição ou a expiação. O fundamento do direito penal é a segurança jurídica que não se confunde com o fim da pena. Esta serve aos fins de prevenção geral e especial, limitada pela medida da culpabilidade (teoria preventiva mista). A pena justa é a necessária, oportuna e proporcional diante das exigências preventivas especiais mínimas. O limite para a segurança jurídica é a própria segurança jurídica[15]. O merecimento da pena inclui a dignidade do bem jurídico e a ofensividade da conduta[16].
6. Pelo abolicionismo penal ou minimalismo, lutam os movimentos de política criminal sediados na criminologia crítica, que defendem a deslegitimidade do sistema de justiça penal como mecanismo formal de controle. O minimalismo per se advoga a máxima redução do sistema penal, preservando o abolicionismo, propondo a supressão por outras instâncias formais e informais de controle social, as intervenções comunitárias ou instituições alternativas. O abolicionismo e o minimalismo radical apontam: a) o sistema penal é incapaz de prevenir, por meio da cominação e execução de penas, quer em caráter geral ou especial, a produção de novos injustos, contestando a presunção geral e qualquer função de garantia. Heinz Steinert (1942-2011), no “Mas alla del delito e de la pena”, in Abolicionismo penal, afirma que a lei penal resulta irreal, pois não tem força para limitar a intervenção do Estado, convertendo-se na prática em uma autorização para que ocorra tal intervenção[17]; b) o verdadeiro poder do sistema penal não é repressivo, mas sim disciplinador, arbitrário e seletivo. A prevenção especial como instrumento para a inserção positiva na macrossociedade, partindo de que a pena é a espinha dorsal do sistema penal, envolve per se uma contradição, pois a microssociedade é um fator deletério e estigmatizante, que desumaniza, perverte e deseduca, configurando-se no mais forte fator criminológico; c) a igualdade formal traduz desigualdades materiais e seletividades estruturais cognitivas[18]. Em um estudo crítico, Alessandro Baratta (1933-2002), na Criminologia crítica y criminologia del Derecho Penal, afirma que o direito penal tende a privilegiar as classes dominantes, isentando do processo de criminalização comportamentos danosos a bens jurídicos relevantes porque próprios de agentes da classe dominante, concluindo que a realidade operativa dos sistemas penais jamais se amoldará à planificação do discurso jurídico-penal (seletividade, em processo de violação encoberta e, autoridade, em processo de violação aberta dos direitos humanos). Os limites do sistema penal são os da macrossociedade[19]. O sistema penal atua sempre seletivamente, sendo a opinião pública formada por marqueteiros operadores dos meios de comunicação de massa. Nils Christie (1928-2015), no Los Limites del dolor, escreve que “um sistema social que permite a si mesmo ser dirigido unicamente pela gravidade do ato em nada contribui para se ter um conjunto satisfatório de modelos para valores da sociedade”[20]. Baratta, na Criminologia crítica y criminologia del Derecho Penal, critica, ao pontuar: a) que o sistema penal intervém de maneira reativa e não preventiva (as questões da violência não podem ser combatidas simbolicamente, constituindo-se em uma forma institucional e ritual de vingança); b) sua atuação é tardia (fato – processo – execução); c) traz uma falsa concepção da sociedade; d) a lei penal não é inerente à macrossociedade, pois há outros instrumentos para manejar o conflito; e) a intervenção atua sobre efeitos e não causas da violência. Ferrajoli grifa que a utopia não é a alternativa, o direito penal tem suas garantias, acrescentando Antonio García-Pablos de Molina (1946), no Derecho Penal, que não se advoga a desaparição do direito penal, mas a sua progressiva racionalização e despenalização. O minimalismo sustenta que, diante do modelo da realidade, o direito penal é necessário, porém deve-se reduzir sua esfera ao campo do absolutamente obrigatório para garantir o controle e a paz social (princípio da intolerabilidade).
7. Democracia é um complexo de valores, não se podendo defini-la à luz de critérios isolados; de natureza pluralista, é produto da cultura ocidental, possibilitando um maior bem-estar pela maior mobilidade nas relações intra e intergrupos. O conteúdo social e econômico, que tem a virtude de abrandar a natureza, antes agressivamente política, da democracia, vem dar-lhe maior profundidade e nova dimensão, em particular sob o ângulo da igualdade, fator primordial na formulação institucional das variantes democráticas. O fundamento político-jurídico está na garantia dos direitos individuais e das liberdades públicas, asseguradas na ação de um Judiciário liberto de limitações para a plenitude da imparcialidade dos julgamentos[21]. A liberdade humana é sempre a liberdade social, é o modo de expressar que a dignidade da vida depende de cada um de nós. Dizia Hans Kelsen (1881-1973), na Teoria pura del Derecho, que “a liberdade do indivíduo, que fundamentalmente é impossível, perde pouco a pouco a importância diante da comunidade social”. Funda-se a liberdade nas prerrogativas da natureza humana: disposição de si mesmo, escolha de atos e responsabilidades. O ponto vivo das variações democráticas contemporâneas está nos reajustes da liberdade com a necessidade de liberdade. Ela, a fim de sobreviver, condiciona-se. Há que se lutar pelo Estado Democrático de Direito, que deve situar a nova problemática da juridicidade estatal. A luta pelo direito é válida e útil e, dadas as condições do mundo contemporâneo, a sua aceitação só pode existir dentro do Direito. O Estado de Direito não funciona no vácuo. Não é esta a hora da liberdade entendida como capricho individual; há um novo endereço que é a sua encarnação na sociedade justa. O grande problema das democracias ocidentais é conciliar a liberdade, imprescindível à dignidade do homem, com as exigências de segurança cada vez mais complexas. O descrédito da normalidade jurídica suscita desconfiança na opinião pública a respeito da continuidade e permanência da política legislativa do Estado. Se a política social cobre seus atos pelo manto da legalidade, o Estado de Direito atua como limite e como garantia dos homens em liberdade.
8. O Estado de Direito na atualidade deixa de ser formal, neutro, individualista, para transformar-se no Estado material de Direito, quando adota uma dogmática e pretende a justiça social[22]. A noção de justiça é central nos problemas jurídicos, possuindo dimensão axiológica, sem aceitar uma radicação ética; identifica-se como componente normativo da conduta social; vincula-se à ideia de igualdade, permitindo identificar os fenômenos jurídicos e observá-los sob o método da ciência social, estando seu conteúdo concreto submetido à ação de elementos constantes da estrutura do homem e, para a realização em cada nação, requer um desenvolvimento simultâneo da democracia institucional, da organização administrativa e da expressão de cultura em grau suficiente de homogeneidade e espiritualidade. No horizonte histórico do nosso século, Direito e Justiça se apresentam como coisas dissociáveis e até inconciliáveis. O Direito objetivo, como conjunto de mandatos do Estado, adquire predominância sobre o Direito subjetivo, considerado como reconhecimento da liberdade individual, ao ritmo que a iniciativa política, social e econômica se haja centralizado e acumulado no organismo estatal. Certo estava Léon Duguit (1859-1928)[23] quando propôs que, em lugar de se falar de separação de poderes, se fale de uma colaboração de órgãos. É uma espécie de revolução copérnica que ocorreu no mundo da experiência jurídica e que obteve os mais amplos consentimentos teóricos na doutrina publicista através da fórmula “Direito e Dever”. Significa que a fórmula do dever jurídico, ou seja, de um comportamento de obediência jurídica, constitui a coluna vertebral sobre a qual se erige a ossatura do ordenamento jurídico. O Direito é ontologicamente a projeção do homem na sociedade mediante o exercício de sua liberdade social, traçando os limites por meio da conduta jurídica. Na sociedade atual, a liberdade é devida fundamentalmente às inúmeras oportunidades que os indivíduos têm de solucionar seus modos de vida e sua atividade produtiva. A consciência da própria liberdade inclui o conhecimento de possibilidades e predisposições próprias de todos os níveis. Neste programa, o Direito consiste no conjunto de possibilidades de ação que a liberdade dos indivíduos e dos grupos tem ao seu alcance para traçar seu próprio caminho dentro dos métodos que impliquem respeito à liberdade dos demais, entendida como condição geral de toda a licitude[24].
9. A origem dos conflitos sociais pode ser situada genericamente na ideia de “interesse”. O homem vive, se move, se relaciona, impulsionado por interesses de diversos tipos, materiais ou espirituais, egoístas ou espiritualistas, circunstanciais ou permanentes, mas há sempre o interesse, e a causa dos conflitos humanos se situa na detenção do poder e na limitação dos bens materiais. O Direito, como meio de resolução dos conflitos sociais, pressupõe que tais conflitos tenham alguma solução, caso contrário a convivência degenera em agressão constante e essa solução necessária é a que proporciona o Direito. É inegável o realismo de Francesco Carnelutti (1879-1965)[25] ao afirmar que a vida social engendra conflitos de interesses da mais variada natureza entre os homens, e tais conflitos se manifestam na existência dos homens em discórdia, cujas posições se tornam incompatíveis, e podem desaparecer pelo imperativo ético, pois, para ele, o Direito é um meio de solucionar “conflitos subjetivos de interesses”. Sustenta que o Direito colocaria fim aos conflitos humanos, esquecendo-se, todavia, de que muitas relações sociais não se degeneram em conflitos e que nestas está presente o Direito. E, mais, é possível que um conflito não exista, precisamente porque existe uma regra de Direito que limita de antemão a conduta de cada uma das partes. A importância que na prática podem ter outros valores ou fins diferentes da justiça surge entre a diferença do valor da justiça e o da segurança, inicialmente formulado por Gustav Radbruch (1878-1949), na Filosofia do Direito[26], de que ambos subsistem numa constante tensão ou contradição, que redunda em detrimento do outro. A justiça significaria muitas vezes a deterioração da segurança, do mesmo modo que, quando a lei põe acento em argumento de segurança, a justiça pode ficar fracionada. Porém, certa é a ideia de que o Direito deve ser um instrumento de aplicação da justiça e que tem de temperar-se a outros fins distintos, entre os quais, a segurança e o desenvolvimento para a ordem e o progresso da nação. A segurança do Estado tem na segurança individual seu alicerce e sua finalidade a fim de proporcionar a conquista e a manutenção dos objetivos gerais, no sentido de possibilitar o bem comum.
10. Na democracia, a sociedade nacional busca viver sob o império da lei. Nossos direitos não são independentes da sociedade, mas inerentes a ela; quando se proporciona o benefício da educação, supõe-se que usar nossas vantagens para contribuir para o bem-estar social da comunidade. Não existo unicamente para o Estado, mas tampouco existe um Estado unicamente para mim. A pretensão procede do fato de participar como os demais da persecução do fim comum. A política democrática se baseia na maior segurança para assegurar o bem-estar dos cidadãos. Os direitos são correlativos com as funções, desfrutar para poder contribuir para a consecução do fim social, visto que não há qualquer direito de atuar de maneira insólita, antidemocrática, antissocial ou antissolidária. O Estado é a organização jurídica da Nação e o governo democrático é a fórmula suprema de organização política, situando-se o problema da democracia na questão de encontrar homens aptos para o manejo da máquina de produção do bem comum. Assim, a liberdade individual está garantida na igualdade de intercâmbios mútuos, e a liberdade coletiva está garantida na organização democrática do poder. É a proteção e a defesa vigilante do meio onde os homens encontram a oportunidade de aperfeiçoar seus destinos. É produto de direitos e todo o Estado se funda em bases de confiança essenciais para o desenvolvimento. Não há liberdade sem direito, senão os homens seriam obrigados a obedecer a normas e leis totalmente divorciadas de suas próprias necessidades. É definida por suas próprias restrições naturais, porque as liberdades de que se pode desfrutar não são meios de destruir as que nos rodeiam. Constituem aquelas oportunidades que a história proporciona como necessárias ao desenvolvimento e, portanto, inseparáveis do Direito.
11. Um sistema que se construa sobre o medo será sempre fatal para o desenvolvimento das faculdades criadoras do homem e, desta forma, incompatível com a liberdade. No mundo contemporâneo, a igualdade significa a exclusão de privilégios especiais, colocando os homens em idênticas condições ante as disputas da vida, que não supõem identidade de oportunidades adequadas desde a sua origem. Chega-se, agora, às indagações do mundo atual que exigem meditação profunda: a) É capaz o Direito de responder satisfatoriamente às exigências sociais? b) Se o Estado se acomoda às normas jurídicas, poderá salvar os hiatos que o separa da realidade social? c) Como poderá o Estado resolver os problemas sociais sem violar o primado do direito e os direitos individuais? d) Será possível desenvolver uma política social à altura dos tempos atuais sem fugir ao modelo jurídico? e) Cabe uma submissão estreita à lei por parte da administração pública ante a urgência de determinados assuntos ou a complexidade de casos que exigem rápida e singular solução? f) Cabe resolver os problemas atuais à base da liberdade? Todos estes problemas cruciantes passaram quase que despercebidos à maior parte dos teóricos do Rechtsstaat, indagando-se: como se concilia o prestígio e a perdurabilidade da expressão “Estado de Direito” com as dificuldades experimentadas pela vigência da atualidade? A igualdade só pode ocorrer na atmosfera irreparável das utopias; a igualdade há de ser das oportunidades livremente assumidas por cada um. Cabe a liberdade dentro de um Estado de Direito se for uma liberdade responsável de seus fins e estará plenamente justificada por uma sociedade justa. A administração é a chave política do Estado. Administrar é planejar, vincular os dirigentes a um ideal, aperfeiçoando as instituições, a fim de atingir o bem comum em toda a sua plenitude.
12. Para a democracia, tem-se que possuir uma efetiva consciência das ideias de liberdade, segurança, igualdade e justiça, através da renúncia do supérfluo, do suntuoso, do ostensivo, transmitindo uma filosofia de amor, capaz de elevar os pobres, redimindo-os da miséria pelo espírito da justiça social que substituirá a ideia de piedade em favor dos humildes por meio de uma política de reabilitação pela dignidade do trabalho, bem como na espiritualização da vida, libertando-a das preocupações do gozo dos bens materiais imediatos. Enfim, dando ao homem o significado de seu destino transcendental. A democracia não está apenas nas letras frias das constituições: é espírito, é mística, é consciência pública, é integração do povo na vida do Estado. É a conquista do progresso sem violência, sem intolerância, sem atos criminosos. Obra do homem para os homens, com virtudes ou defeitos, ocasionando enganos ou desenganos, é a única solução para o processo de desenvolvimento e para o bem-estar da macrossociedade. A fundamentação dos princípios constitucionais se situa na atividade legislativa não ilimitada e discricionária. No específico âmbito jurídico-penal encontram-se: a) princípios e critérios normativos que delimitam o poder punitivo do Estado; b) princípios jurídicos de correlação entre o direito penal e o ordenamento jurídico em conjunto; c) princípios singulares estruturais de fundamentação e legitimação do direito penal. Como consequência, de um lado, tem-se a inexistência de limites jurídicos, de outro, a legitimidade de sua validade que requer limitações normativas que tenham patamar em exigências axiológicas. O direito penal para fugir do fracasso necessita de previsões normativas que se fundamentem nas efetivas exigências de inter-relações pessoais na convivência social. Observam-se os limites constitucionais em sentido estrito através dos: a) princípio da legalidade; b) princípio da humanidade, que se traduz no respeito à dignidade humana, desde toda a intervenção punitiva geral, compreendendo aspectos valorativos, de natureza e conteúdo, e aspectos teleológicos da pena (fim formal e executivo); c) princípio da proporcionalidade ou proibição do excesso gravidade da ação e a pena prevista, tanto na cominação (abstrata), na aplicação e na execução (concreta); d) princípio do ne bis in idem na análise da tríplice identidade (fato, fundamento e sujeito) como direito de defesa do cidadão junto ao Estado, para evitar duplicidade de sanções. Já nos limites constitucionais objetivo-funcionais, estariam abarcados nos princípios: a) princípios da ação ou da conduta: o direito penal moderno é um direito penal do ato, não do autor, nem da vontade. Não se punem os meros pensamentos ou qualidades psicológicas, racionais ou pessoais, bem como o modo de ser pessoal de cada indivíduo; b) princípio da culpabilidade normativa pessoal: culpabilidade como fundamento e limite da pena. Não há pena sem culpabilidade, que corresponde ao grau de culpabilidade do autor; c) princípio da proteção dos bens jurídicos (ofensividade ou lesividade): missão protetora dos bens jurídicos. O Estado legitimado para intervir diante da exigibilidade social expressada pela vontade dos cidadãos na proteção de certos bens e valores que traduzem cuidados de função social para garantir a paz pública em razão da intolerabilidade do conflito. O bem jurídico é o bem ou valor considerado pela norma penal como merecedor e necessitando de proteção jurídica diante do princípio da intolerabilidade do conflito, para garantia da paz social. O direito penal tem a missão de proteger os bens jurídicos; d) princípio da prevenção: conjuga-se com o princípio da tutela do bem jurídico, pois confluem para o mesmo efeito, visto que o direito penal tem uma tarefa seletiva, valorativa e protetora de bens e valores da pessoa humana e da macrossociedade. A garantia dos objetivos da tutela, não é de índole formal e pragmática, mas social e coercitiva para os programas legislativos propostos pela política criminal.
13. O direito de punir do Estado responde ao desvalor de um resultado e de uma ação afeta a um bem jurídico e princípio da intervenção mínima configura um dos marcos limitativos do controle social. A seleção dos bens jurídicos é ditada pelo princípio da intervenção mínima. O verdadeiro poder do sistema penal não é repressivo, mas sim, disciplinador, arbitrário e seletivo. A prevenção especial é a espinha dorsal do sistema penal. Os limites do sistema penal são os limites da macrossociedade. Ferrajoli alinha os princípios das garantias penais e processuais (modelo garantista): a) princípio da retribuidade (consequência da pena perante o delito); b) princípio da legalidade / modelo regular, sentido lato e estrito; c) princípio da necessidade ou da economia do direito penal; d) princípio da materialidade ou exterioridade da ação; e) princípio da lesividade ou ofensividade; f) princípio da culpabilidade ou da responsabilidade pessoal; g) princípio da jurisdicionalidade; h) princípio acusatório ou da separação entre juiz e a acusação; i) princípio do contraditório ou da verificação; e, j) princípio do contraditório ou da falseabilidade. Ao decorrer destas reflexões principiológicas, destacaria o princípio da ressocialização, pois a pena não pode ser uma ferramenta de uso arbitrário-oportunista. No Estado de Direito a sua legitimação material é específica, constitui-se em uma função preventiva geral estando, teoricamente, direcionada para o cumprimento da função preventiva especial por meio da inserção social do apenado. Junto ao ordenamento jurídico em conjunto estão os princípios de relevância em outras instâncias normativas que caracterizam o direito penal: a) princípio da intervenção mínima e necessária subsidiariedade. Objetivando possibilitar a convivência social atua subsidiariamente às instâncias formais e informais de controle e prevenção, diante do tripé: cominação - aplicação - execução da pena, buscando garantir o mínimo tolerável de conflito, razão pela qual serve subsidiariamente à proteção dos bens jurídicos. A subsidiariedade é derivada do princípio de intervenção mínima, isto é, a intervenção estatal através do direito penal. Só deverá ocorrer quando da comprovada a ineficácia dos outros instrumentos de controle social. Deve-se destacar o princípio de humanidade ou respeito à dignidade pessoal, que reúne várias facetas, como salva guardas da humanidade diante de toda intervenção punitiva geral, compreensiva das dimensões tanto valorativas (a própria natureza e conteúdo da pena) quanto teleológicas (fim perseguido pela pena) como forma e execução (humanidade da execução). O caráter do princípio de humanidade abarca o princípio de intervenção penal em seu conjunto. Toda intervenção punitiva no Estado social e democrático de Direito deve ser guiada pelo princípio de respeito à dignidade humana – princípio que expressa um critério que é fundamento e guia de toda ação punitiva estadual (rerus sacra est). A fecunda iluminação ideológica libera trouxe a consciência da necessidade de respeito à pessoa do apenado repudiando o trato degradante a pessoa humana detida. Ficam abolidas as penas corporais e simbólicas existentes em tempos históricos que impedem a reinserção social (de morte e perpétua).
14. Em um Estado Democrático de Direito há restrição no âmbito legiferante das leis penais. Baratta sustenta que o ponto vital da orientação minimizadora se radica na injustiça e inutilidade da pena, cuja função seria a reprodução das regras de domínio já existentes recaindo sobre os decaídos. Busca desenvolver uma teoria da minimização da intervenção tomando como ponto de referência os direitos humanos e acredita em uma visão conflitiva de nosso modelo social. Sua proposta não coincide com Ferrajoli, sobre o direito penal mínimo, que denomina de garantista, cognitivo ou de estrita legalidade. O minimalismo tem sido associado às posturas defendidas pela denominada Escola de Frankfurt do direito penal, prevendo sua restrição a um direito penal básico que tenha por objeto as condutas atentatórias à vida, à saúde, à liberdade e à propriedade, com manutenção das máximas garantias na lei, na imputação da responsabilidade e no processo. Surge sob tal ótica a evolução do direito penal oficial como uma cruzada contra o mal, desprovida de mínima fundamentação racional. O incremento essencial de valor diante da evolução sociocultural (patrimônio histórico-artístico), a defesa de bens coletivos e interesses difusos mostram um espaço razoável de expansão do direito penal. Colhem-se como conclusões que deve ser mantido o modelo de direito penal mínimo, diante do racionalismo jurídico, garantista com limites ou proibições, presidido pelo Estado Democrático de Direito, isto é, um tipo de ordenamento no qual o Poder Público, em especial o ius puniendi, esteja rigidamente limitado e vinculado às leis e à Constituição. É certo que o direito penal é racional na proporção da previsibilidade da intervenção estatal, afastando-se a aspiração autoritária. Nem a incerteza do ato, nem a incerteza do Direito. O Estado absoluto da época da Iluminação mantinha o magistrado tão só sujeito à lei, e proibia qualquer interpretação. Sua única tarefa era de aplicá-la literalmente. O magistrado era probido de ensinar nas universidades as leis, com o objetivo de não sugerir nenhuma literatura de comentários e de nenhuma insegurança jurídica[27]. Dietrich Oehler (1915-2005), professor de Colônia, lembra que já existia uma forte corrente filosófica-jurídica capitaneada por Kant e por Anselm Feuerbach que defendia que a missão do Estado era fornecer ao homem uma esfera de âmbito maior, a mais ampla possível, para o desenvolvimento de sua grade moral. O positivismo conduz a uma relativização dos valores protegidos pelo direito penal, o magistrado está ligado com as cartacterísticas que fundamentam e agravam as penas da lei, diante do princípio garantista nullum crimen sine lege. Deve-se ter em mente que o direito penal necessita manter seus laços com as mudanças sociais. Ele precisa ter respostas prontas para as perguntas de hoje, e não pode sempre retroceder a um puritanismo de ontem, perdendo-se em problemas sobre a norma e sua violação. Precisa continuar desenvolvendo-se em contato com a sua realidade. A questão decisiva, porém, será de quando de sua tradição deverá abrir mão a fim de manter esse contato. Essa questão será afinal decidida politicamente, o que significa, no que diz respeito, sem influência significativa das ciências penais, ainda assim, elas têm a chance (e a tarefa) de produzir ou de desenvolver alguns topoi mínimos, que sem uma observância, uma decisão política, não deveria ser legitimamente adotada. Entre essas bases mínimas, inclui-se com destaque a difusão da atitude de dever às garantias penais e processuais do Estado de Direito não como relíquias de um formalismo ultrapassado, e sim, como requisitos de sua legitimação.
15. A anistia é uma das mais vetustas formas de extinção da pretensão punitiva é a indulgentia principis, que é expressa em três instituições: anistia, graça e indulto. Assim, é uma medida equitativa que busca atenuar os rigores da decisão judicial (supplementum iustitiae), por força das circunstâncias econômicas, sociais ou políticas. Como meio de pacificação social depois dos períodos de turbulência ou após grandes conquistas para a nação ou seu chefe, indultavam-se os autores de delitos não graves. Registre-se que, com a Constituição de 1988, não mais se cita, corretamente, a graça, mencionando-se apenas a anistia e o indulto, tendo a Lei da Execução Penal passado a se referir a ela como indulto individual, embora mantida pela Reforma de 1984 (art. 107, II, 2ª figura, CP). É uma forma de prerrogativa soberana do ius gratiandi reconhecida ao Poder Legislativo (art. 48, VIII, CF/88), que, uma vez concedida, não pode a posteriori ser revogada. A anistia apresenta a mais ampla faixa de efeitos, fazendo desaparecer o ilícito penal, outorgando a condição de primário e apagando todos os efeitos penais, salvo a reparação do dano. É historicamente conhecida como “a lei do esquecimento”, consistindo em ato de clemência, atendendo a razões de necessidade e conveniência políticas.
16. A anistia pode ser: a) própria, quando concedida antes da condenação, durante o processamento da ação penal, ou, antes, de sua instauração; b) imprópria, concedida após o trânsito em julgado ou em grau recursal; c) plena, quando beneficia todos os envolvidos no crime sem distinção de qualidade ou condição pessoal; d) restrita, ou parcial, em relação a determinado autor típico ou a determinado crime com exclusão de outros (concurso de crimes); e) condicional, quando não abrange todos os efeitos, exigindo-se bilateralidade, devendo o beneficiário pronunciar-se sobre a aceitação. É medida de interesse coletivo, motivada, em geral, por considerações de ordem política, inspiradas na necessidade de paz social, podendo ser concedida antes ou depois da condenação. Alcança o crime em qualquer momento procedimental, ou mesmo antes que se inicie a sua investigação. Destina-se, com seus amplos efeitos, aos crimes políticos, objetivando a paz social, e tem o condão do esquecimento do ilícito penal com a abstração completa de seu autor, em outras palavras, dirige-se ao fato e não às pessoas, diante de seu caráter objetivo. Dentro do princípio favorabilia sunt amplienda é estendida aos crimes conexos. Se não forem especificados os efeitos civis expressamente, permanece a obrigação de indenizar pelo dano material e moral. A posição do Supremo Tribunal Federal em relação aos crimes cometidos por militares e ativistas que foram anistiados diante do julgamento da ADPF 153, em que foi afirmada a constitucionalidade da Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979, e definido na esfera de âmbito de sua incidência – crimes políticos e conexos no período de 2.9.1961 a 15.8.1979. Do importante julgamento da Suprema Corte, extraem-se, na ementa, as seguintes passagens: a) “O argumento descolado da dignidade da pessoa humana para afirmar a invalidade da conexão criminal que aproveitaria aos agentes políticos que praticaram crimes comuns contra opositores políticos, presos ou não, durante o regime militar, não prospera”; b) “Conceito e definição de ‘crime político’ pela Lei n. 6.683, de 28 de agosto de 1979. São crimes conexos aos crimes políticos ‘os crimes de qualquer natureza relacionados com os crimes políticos ou praticados por motivação política’; podem ser de ‘qualquer natureza’, mas hão de terem estado relacionados com os crimes políticos ou [ii] hão de terem sido praticados por motivação política; são crimes outros que não políticos; são crimes comuns, porém [i] relacionados com os crimes políticos ou [ii] praticados por motivação política. A expressão crimes conexos a crimes políticos conota sentido a ser sindicado no momento histórico da sanção da lei. A chamada Lei de anistia diz com uma conexão sui generis, própria ao momento histórico da transição para a democracia. Ignora, no contexto da Lei n. 6.683, de 28 de agosto de 1979, o sentido ou os sentidos correntes, na doutrina, da chamada conexão criminal; refere o que ‘se procurou’, segundo a inicial, vale dizer, estender a anistia criminal de natureza política aos agentes do Estado encarregados da repressão”; c) “É da anistia de então que estamos a cogitar, não da anistia tal e qual uns e outros hoje a concebem, senão qual foi na época conquistada. Exatamente aquela na qual, como afirma inicial, ‘se procurou’ [sic] estender a anistia criminal de natureza política aos agentes do Estado encarregados da repressão. A chamada Lei da anistia veicula uma decisão política assumida naquele momento o momento da transição conciliada de 1979”; d) “No Estado democrático de direito o Poder Judiciário não está autorizado a alterar, a dar outra redação, diversa da nele contemplada, a texto normativo. Pode, a partir dele, produzir distintas normas. Mas nem mesmo o Supremo Tribunal Federal está autorizado a rescrever leis de anistia”; e) “Revisão de lei de anistia, se mudanças do tempo e da sociedade a impuserem, haverá ou não de ser feita pelo Poder Legislativo, não pelo Poder Judiciário”; f) “Impõe-se o desembaraço dos mecanismos que ainda dificultam o conhecimento do quanto ocorreu no Brasil durante as décadas sombrias da ditadura” (STF, ADPF 153/DF, Pleno, rel. Min. Eros Grau, j. 29.4.2010).
17. Há dois aspectos indissociáveis: a) o constitucional, que engloba a soberania e a manifestação do ius iminens do Estado, obedecendo a interesses sociais; b) o penal, diretamente ligado ao ius puniendi e repercutindo sobre os crimes e as penas, como matéria de política criminal. É concedida por lei do Congresso Nacional, ex vi do art. 48, VIII, da CF/88, não é mais exigível a iniciativa do Presidente da República, pois fica ao Judiciário o direito de examinar o alcance legal e aplicar à hipótese concreta. É irrenunciável, salvo quando condicionada. Ao Judiciário cabe verificar o alcance de sua aplicação. Diz o art. 187 da Lei de Execução Penal que “concedida a anistia, o juiz de ofício, a requerimento do interessado ou do Ministério Público, por proposta da autoridade administrativa ou do Conselho Penitenciário, declarará extinta a punibilidade”. Opera efeitos ex tunc, exceto os efeitos civis. Pela Constituição Federativa de 1988 (art. 5º, XLIII, CF/88) são insuscetíveis do direito de graça a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo (PL 2016/2015: “O terrorismo consiste na prática por um ou mais indivíduos dos atos previstos nesta lei, por razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião, quando cometidos com a finalidade de provocar terror social ou generalizado, expondo a perigo pessoa, patrimônio, a paz pública ou a incolumidade pública”) e os crimes definidos como hediondos. Com a edição da Lei nº 8.072, de 25 de julho de 1990, extrapolando os limites concedidos pela Carta Política, fez incluir no rol o indulto.
Aguardemos!
[1] Doutorado (UEG). Professor Emérito da EMERJ. Desembargador (aposentado) do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro. Presidente do Tribunal Regional Eleitoral do Rio de Janeiro (2001-2003).
[2] MAYRINK DA COSTA, Álvaro. Direito Penal, Parte Especial, v. 4, 6 ed., GEN/Forense, 2008, 10-11.
[3] SOLER, Sebastián. Derecho Penal argentino, 3 ed., Buenos Aires, Tipografía Argentina, 1973.
[4] HASSEMER, Winfried. Fundamentos del Derecho Penal, Barcelona, Bosch, 1984.
[5] BINDING, Karl. Grundriss des deutschen Strafrechts, Allgemeiner Teil, 8. Auflage, Leipizig, Scientia,verlag Aalen, 1975.
[6] MUÑOZ CONDE, Francisco. Derecho Penal, Parte General, 4 ed., Valencia, Tirant lo brannch, 2000.
[7] BUSATO, Paulo Cesar/HUAPAYA, Sandro Montes. Introdução ao Direito Penal. Fundamentos para um Sistema Penal democrático, Lúmen Juris, 2003, 2.4.1, 187-188.
[8] Art. 155 do CP. [9] MAYRINK DA COSTA, Álvaro. Criminologia, 3 a ed., Forense, 1982, vol.I, t. I, 11.
[10] FEUERBACH, Paul Johan Alselm von. Lehrbuch des Gemeinen in Deutschland gültigne Peineithes Recht, 14. Auflage, Giessen, George Friedrich Heyer’s verlag, 1847.
[11] ROXIN, Claus. Derecho Penal, Parte Generale, T. I, Fundamentos, La estructura de la Tepría del Delito, trad. Luzón Peña, Madrid, Civitas, 1997.
[12] WELZEL, Hans. Das deutsches Strafrecht, Eine Systematische Darstellung, 11. Auflage, Berlin, Walter de Gruyter, 1969.
[13] MAYRINK DA COSTA, Álvaro. Exame Criminológico, Rio, 5 ed., Forense, 1997.
[14] CARRARA, Francesco. Programma del Corso di Diritto Criminale, Parte Generale, 9 ed., Firenze, Fratelli Cammelli, 1902.
[16] Evidencia-se incompatível com o Estado de Direito a pena sem culpa. Exige-se respeito ao limite máximo de culpabilidade, sendo possível afirmar-se que a camisa de força do julgador é a lei. Destaca-se que a expressão de segurança jurídica reclama na democracia a previsibilidade e capacidade de medir previamente a pena a ser aplicada. Note-se que a proporcionalidade, determinação e delimitação de comportamentos devem corresponder aos estritos pressupostos constitucionais.
[17] STEINERT, Heinz. Mas alla del delito y de la pena, in Abolicionismo penal, Buenos Aires, Ediar, 1989, 45.
[18] BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica ao direito penal – Introdução à sociologia do direito penal, trad. Juarez Cirino dos Santos, Rio de Janeiro, Revan, 1997.
[19] ANDRADE, Vera Regina P. de. A ilusão de segurança jurídica, Porto Alegre, Livraria dos Advogados, 1977.
[20] CHRISTIE, Nils. Los límites del dolor, México, Fondo de Cultura Economica, 1984, 60-61.
[21] Para Norberto Bobbio (1909-2004), na teoria contemporânea da democracia, confluem três grandes tradições do pensamento contemporâneo: a teoria clássica, divulgada como teoria aristotélica; a teoria medieval, de origem romana, apoiada na soberania popular; e a teoria moderna, conhecida como a teoria de Nicolau Maquiavel (1469-1527).
[22] Como derivação do princípio do Estado de Direito, temos a exclusão do direito consuetudinário, a proibição do efeito retroativo e da analogia e o princípio da reserva legal (nulla poena sine lege scripta et scripta at que praevia). O princípio da irretroatividade da lei penal configura a interferência direta da garantia da anterioridade da lei sobre uma nova situação fática. A aplicação retroativa da lei aos casos não incriminados anteriormente encontra resistência ao se observar a existência do direito adquirido na área do direito público, na órbita especial do Direito Penal.
[23] DUGUIT, Léon. Traité de Droit Constitutionnel, Paris, Fontemoing and Company, 1912.
[24] Félix Oppenheim (1874-1938) registra que o conceito de liderança contemporaneamente tem uma acepção muito diversa a que tinha na história do pensamento desde Platão (428-328 a.C.). Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) entende a liberdade não mais como a liberdade de agir na esfera do possível e sim na obrigação de agir da maneira ordenada pela autoridade. Enfim, a liberdade não significa que o Estado precisa ser sensível à vontade dos cidadãos, e sim que os cidadãos têm a obrigação de obedecer às normas governamentais que traduzem e refletem a vontade da maioria da sociedade. A democracia exige que as liberdades civis sejam protegidas por direitos igualmente definidos e por deveres a eles correspondentes.
[25] Os realistas não contestavam a existência do direito positivo.
[26] RADBRUCH, Gustav. Filosofia do Direito, trad. Cabral de Moncada, 6 ed., Coimbra, Armênio Amado, 1997.
[27] V. Direito Geral Prussiano, de 1794 (Allgemein landrecht) e o código penal da Baviera, de 1813 (Straftgesetztuth).
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